O QUE IMPORTA SABER
O vigarista da verdade desportiva é o que apela à verdade das
decisões com base nas “novas tecnologias” e simultaneamente passa o seu tempo
de antena a proferir juízos de intenções, contrapondo factos reais a factos
congeminados pela sua mente doentia. O vigarista da verdade desportiva é o que
apela à utilização das “novas tecnologias” sem sequer se dar ao trabalho de
explicar aos telespectadores que esse uso é bem limitado e que, a aplicarem-se,
apenas tinham a virtualidade de substituir um árbitro por outro, com a diferença
de esse outro estar longe dos jogadores e das jogadas.
A “verdade desportiva” na boca de um vigarista é sempre uma
grande mentira.
Começando pelas mentiras: era ou não importante os
telespectadores saberem a quem pertence o tempo de antena da televisão onde se
propaga a “verdade desportiva”? De quem é esse tempo de antena: é da cadeia de
televisão sob cujo sinal ele se transmite ou é de alguém que lá está e que o
paga para a ele ter acesso? Para começar era importante saber isto: a “verdade
desportiva” exige-o!
Passemos depois aos processos de intenções que são a forma mais
covarde e insidiosa de espalhar a mentira e o ódio. O exemplo típico é este: perguntar,
deixando subentendida a resposta, o que teria decidido o árbitro se fosse um
jogador do Benfica a faltar-lhe ao respeito?
Antes de mais, é bom que se perceba que somente um vigarista
profissional formula a pergunta nestes termos Uma pessoa séria trataria o assunto,
apresentando factos. E então afirmaria: os jogadores x, y e z do Benfica nos
jogos tal e tal faltaram ao respeito ao árbitro e não foram expulsos. Mas mesmo
que isso tivesse acontecido jamais tal atitude do árbitro poderia ser invocada
para justificar a não punição de comportamentos futuros da mesma natureza. O erro
do árbitro não muda a regra, que se mantém válida e eficaz, devendo tal erro justificar uma grave censura e uma penalização ao árbitro que não cumpriu a
lei.
Ou, então, um comentador sério afirmaria: Coroado, num jogo contra o sporting, expulsou
Cannigia por uso de palavras impróprias (apesar de toda a gente ter ficado
convencida de que Coroado se enganou, supondo que estava mostrar o segundo
amarelo; mas como o que conta é a palavra do árbitro, Cannigia foi expulso por
palavras indecorosas proferidas contra o árbitro); João Pinto foi expulso mais
de meia dúzia de vezes pelo mesmo motivo; Petit foi expulso no Bessa por João Ferreira
pelo mesmo motivo; idem Coentrão; e os exemplos poderiam multiplicar-se. E então
teríamos múltiplos casos de jogadores do Benfica expulsos por palavras ou
gestos impróprios dirigidos ao árbitro.
Obviamente, que um vigarista da verdade desportiva passa por
cima de tudo isto, porque o que verdadeiramente lhe interessa é lançar a
suspeita e deixar consolidar a suspeição.
Passemos agora à “verdade desportiva” propriamente dita.
Qualquer pessoa minimamente instruída sabe ou percebe, se lhe explicarem, que
as regras, quaisquer que elas sejam – jurídicas, morais, religiosas, de
cortesia, desportivas, etc – não têm uma aplicação matemática. Só em circunstâncias
muito especiais e raras é que as coisas se passam assim. Ou seja, só em casos
raríssimos é que a aplicação da norma é unívoca, querendo com isto dizer que
todas as pessoas chegam ao mesmo resultado. Na maior parte dos casos, porém, há
que fazer uma avaliação, há que analisar valorativamente se um concreto
comportamento corresponde ou não ao comportamento abstractamente prescrito na
norma. E como este juízo não é um juízo de ciência, mas um juízo valorativo, é normal
que as pessoas perante uma determinada situação não cheguem todas à mesma
conclusão – umas avaliarão de um modo o comportamento, outras de outro. Isto
passa-se em todos os complexos normativos.
Daqui resulta, antes de mais, que a esmagadora maioria das
situações ocorridas num jogo de futebol têm de ser avaliadas seja por quem o dirige
dentro do campo, seja por alguém fora do campo. Mas o juízo que esse árbitro
terá de formular será sempre um juízo susceptível de controvérsia, já que se
trata de um juízo valorativo, ou seja, um juízo que varia ou que pode variar de
pessoa para pessoa. Se esse juízo não for formulado pelo árbitro que está no
campo, alguém vai ter de o fazer por ele fora do campo. E não é por esse
alguém, fora do campo, poder ver a jogada repetida pela televisão, que esse
juízo deixa de ser um juízo de valor para se tornar num juízo de ciência. Esse juízo,
como se já disse, mantém-se valorativo, quanto à sua natureza, o que quer dizer
que duas pessoas podem chegar a conclusões opostas.
Juízos de ciência, possibilitados pelo uso das novas
tecnologias no futebol, só existem, em três situações: saber se a bola
ultrapassou ou não a linha de golo; saber se a bola saiu ou não do rectângulo
de jogo; e saber se há ou não off side.
Apesar de apenas haver estes três casos qualquer pessoa minimamente
inteligente percebe que eles não estão todos no mesmo plano. Digamos que há
duas situações verdadeiramente absolutas, no sentido de que sempre podem ser
aplicadas, e uma outra que é relativa, já que apenas poderá servir parcialmente,
digamos, para evitar o pior, mas nunca absolutamente.
No primeiro grupo de casos, estão as decisões sobre se houve
ou não golo, por a bola ter ultrapassado a linha de baliza, e sobre se a bola
saiu ou não do rectângulo de jogo. Se a resposta for afirmativa, no primeiro
caso, o árbitro interrompe o jogo, valida o golo e manda a bola ao centro e no
segundo ou manda efectuar o lançamento lateral, ou pontapé de baliza ou o corner,
consoante o lado por onde a bola tiver saído e consoante quem a tiver posto fora do
campo.
Quanto ao fora de jogo, a questão é mais complicada. Das duas,
uma: ou os árbitros assistentes deixavam de assinalar foras de jogo e tudo ficava
entregue às “novas tecnologias” ou os árbitros assistentes mantêm essas
competências e nesse caso o uso das novas tecnologias é meramente relativo, já que
serve apenas para invalidar os golos irregularmente marcados.
Dificilmente se poderia aceitar como regra geral que os
árbitros assistentes deixassem de assinalar os fora de jogo. Isso tornava o
futebol quase inviável como espectáculo, além de o transformar num jogo
ultradefensivo. Portanto, como os árbitros assistentes têm de continuar a
assinalar os fora de jogo, as novas tecnologias neste caso só servem para
invalidar os golos marcados irregularmente e não para corrigir os off side incorrectamente assinalados que
vão continuar a existir sem outras consequências.
Fora destes três casos, que o vigarista da verdade desportiva
nunca sequer abordou com a complexidade que eles têm, o que o vigarista da
verdade desportiva pretende é substituir o árbitro do campo, por um árbitro de
televisão susceptível de todo o tipo de pressões pelos comentadores seus pares.
Só que o vigarista da verdade desportiva tenta passar como verdadeira a ideia
de que por essa via as decisões serão sempre corrrectas e unívocas. Para se
perceber como o vigarista da verdade desportiva está a tentar vigarizar as
pessoas basta atentar no modo como ele próprio aprecia os lances e a qualificação
que deles faz.
E não voltaremos a perder tempo com vigaristas nem com moços
de fretes, que de futebol nada percebem, do qual quase não falam e quando falam
é apenas para intrigar e lançar suspeitas infundadas. Se fizessem um boicote
aos vigaristas da verdade desportiva, eles teriam que ir gozar os rendimentos
da tia para outra freguesia.