O DÉFICE DEMOCRÁTICO NO
FUTEBOL
Paulo Bento parece ser uma pessoa séria tão convencido das
suas opções técnicas como das suas virtudes morais. Mas mesmo que estas qualidades
lhe fossem unanimemente reconhecidas elas não o isentariam nunca da crítica. A
sua actividade, como qualquer outra, está sujeita à crítica. A entrevista de
ontem à noite na RTP deveria ter servido para aprofundar a questão da crítica
no futebol, nomeadamente quando está em causa a selecção. Carlos Daniel, um dos
entrevistadores, não enjeitou o tema, mas breve percebeu que havia pouco campo
para isso, principalmente pelas posições categóricas defendidas pelo
entrevistado sobre o modo como exige que os outros interpretem o seu papel ou,
dito ao contrário, sobre o modo como exige que os outros se comportem.
Nas críticas à selecção, genericamente consideradas, houve três
ou quatro assuntos que de modo mais ou menos directo constituíram o objecto das
preocupações de quem escreveu ou de quem falou.
O primeiro, levantado por Manuel José e secundado por Carlos
Queiroz, tinha a ver com o planeamento da preparação para o Europeu e com o
papel dos patrocinadores;
O segundo, muito discutido na imprensa, embora nem sempre com
a consistência devida, respeitava às escolhas de Paulo Bento;
O terceiro com as opções técnicas do seleccionador em
momentos decisivos do Euro como o modo de abordagem do jogo contra Alemanha, o
desamparo de Coentrão no jogo contra a Dinamarca, a “política” das
substituições em todos os jogos e a escolha da lista dos marcadores das grandes
penalidades bem como da respectiva ordem, no jogo contra a Espanha;
O quarto com o papel de Ronaldo na selecção, questão umas
vezes ostensivamente outras subliminarmente presente em todas as análises,
embora muito atenuada depois da prestação do jogador nos jogos contra a Holanda
e a República Checa.
Paulo Bento não aceita que colegas de profissão e mais ainda
ex-seleccionadores o critiquem relativamente a uma matéria que, segundo ele,
desconheciam. É claro que esta resposta visa deitar poeira nos olhos de quem o
ouve. De facto, a crítica incidiu sobre aspectos que estavam à vista de toda a
gente, tendo as palavras de Manuel José sido secundadas por legiões de adeptos
e que se justificavam plenamente depois das péssimas exibições da selecção nos
jogos particulares de preparação. Por outro lado, a chamada de atenção sobre o
papel dos patrocinadores é também uma questão muito importante, porque eles
tendem a destruir a independência de quem é formalmente responsável. Paulo
Bento até deveria ter agradecido esta crítica. Paulo Bento reagiu mal às
críticas porque no fundo é contra a crítica. Acha que a crítica põe em causa a
sua pessoa e a sua competência e reage a isto como se de uma questão de honra
se tratasse. É uma atitude que revela insegurança - uma característica típica
das personalidades autoritárias - que todavia pode vir a ser corrigida com
mais maturidade que o tempo lhe permitirá adquirir. Por outro lado, a
ostentação exibida pelos jogadores e o modo como Ronaldo se dirigiu ao
Presidente da República, além de demonstrarem falta de senso, revelam também
falta de preparação dos actos em que a selecção participou.
A questão das escolhas não foi abordada na entrevista. Mas
alguma coisa está mal quando há sete jogadores que nem um minuto jogam em cinco
jogos, um deles com prolongamento. Se eram assim tão diferentes dos titulares e
se tinham dificuldades em se adaptar ao modelo de jogo do seleccionador por que
foram convocados? Por que não se escolheu outros? É certo que não há “muita
fartura” mas sempre teria sido possível escolher alguém “mais parecido” com os
titulares e que se adaptasse melhor às ideias do treinador. Por que foram
escolhidos Quaresma e Hugo Barbosa se manifestamente não tinham qualquer
hipótese de jogar?
Relativamente às críticas relacionadas com questões técnico-tácticas,
como elas foram feitas também por ex-jogadores de renome na selecção, Paulo
Bento deu a entender que as aceitava, mas desculpou-se logo a seguir com a
dificuldade que por vezes os jogadores têm de pôr em prática a estratégia
visada, não necessariamente por culpa deles, mas como consequência das
vicissitudes do próprio jogo. Também ficou por esclarecer quem estabeleceu a
ordem de marcação das grandes penalidades e ninguém perguntou por que razão foi
escolhido Moutinho. Aqui havia campo para muita mais conversa. E é bem melhor
ter “estas conversas” quando as coisas correm bem do que quando correm mal.
Finalmente, a questão de Ronaldo foi contornada por Paulo
Bento. Compreende-se: é um assunto delicado para qualquer treinador. Mas é
óbvio que salta aos olhos de toda a gente que Ronaldo não é líder de coisa nenhuma
a não ser dele próprio. Ególatra e narcísico como é, preocupa-se apenas com a
sua pessoa. Está muito longe pelas características da sua personalidade de personificar
o líder que uma equipa de futebol por vezes precisa. Não se é líder por se ser
bom jogador. São coisas diferentes. Ronaldo em muitos jogos o que realmente
precisava era de alguém que “mandasse” nele dentro do campo…
Repare-se que as críticas que foram dirigidas à selecção nem
sequer são assim tão contundentes, pelo menos a maior parte delas, como se
pretendeu fazer crer. O que é lamentável é que o seleccionador ache que elas se
“não devem fazer”. Seja por razões éticas sejam por razões técnicas.
Infelizmente há quem no jornalismo desportivo siga à risca os
pontos de vista de Paulo Bento, o que desde logo deixa perceber qual o grau de independência
e de profissionalismo de muita gente que se dedica à imprensa desportiva. Alguns programas,
bem como os respectivos protagonistas, foram caricatos. Na TVI 24 o seguidismo
e o tom ofendido com que foram recebidas as críticas deixa em suspenso dúvidas
que certamente só mais tarde se desvanecerão. As críticas não são aceitáveis
porque os comentadores são amigos do criticado? Porque querem estar nas boas graças
da Federação? Porque estão à espera de alguma coisa? É que o papel de um
jornalista desportivo não é fazer a crítica em função das amizades ou das
recompensas que espera obter. O seu compromisso é apenas com os telespectadores.
Se não tem condições para respeitar esse compromisso deve abandonar a
profissão. Mas nem todos pautaram o seu comportamento pelo exemplo da maioria. Na RTP Informação houve
muita mais compreensão pelas críticas e respeito pelos seus autores, mesmo
quando não se concordava com elas, do que em qualquer outraa estação de TV. Pelo menos, de uma parte considerável dos comentadores…