A LENDA VAI TOMANDO O
LUGAR DA HISTÓRIA
Muito se tem falado de essa coisa de “Eusébio ser património
nacional”. Ele também falou disso, mas sempre com aquela ironia africana tão
Xipamanine e Mafalala. Dizem-se coisas absolutamente contraditórias sobre as
frustradas transferências de Eusébio para a Itália, primeiro para a Juventus e
depois para o Inter de Milão.
É verdade que a Juventus manifestou interesse em ter Eusébio
nas suas fileiras em 1964 (e não em 1966, como já vi para aí escrito). Nessa
altura já Eusébio havia ganho uma Taça dos Campeões Europeus (1962) e já tinha
participado noutra final da mesma Taça em 1963. Na época seguinte 1963/64, o
Benfica ganhou o campeonato, mas foi estrondosamente eliminado pelo Borússia de
Dortmund (ganhou 2-1, na Luz e perdeu 5-0, em Dortmund, sem Eusébio).
Foi neste contexto que surgiu a proposta italiana. À época os
jogadores não eram livres de se transferir como hoje. Os contratos não tinham
prazo e quando passaram a ter o clube que detinha o passe podia sempre exercer
o direito de preferência pela ridícula quantia de 10% do valor da proposta.
Eram uma espécie de servos da gleba, com a diferença de que não estavam ligados
à terra mas ao clube. Portanto, Eusébio só se transferiria se o Benfica
autorizasse (nessa época a FIFA não intervinha nestas coisas; noutra ocasião
falar-se-á aqui do caso Puskas, que não é verdadeiramente uma excepção ao
afirmado). E muito provavelmente o Benfica não autorizaria.
Mas há mais. O Eusébio como todos os mancebos da sua idade
tinha de cumprir o serviço militar. E ninguém era autorizado a emigrar sem
primeiramente cumprir o serviço militar. Era por isso que os jovens dessa época
“iam a salto” sempre que queriam trabalhar no estrangeiro. Eusébio não o
poderia fazer, não poderia “ir a salto”, porque sem a autorização do clube a
que pertencia não poderia “trabalhar” no estrangeiro.
Estas as razões por que Eusébio não foi para a Juventus.
Nunca à época ou posteriormente ouvi dizer que Salazar se tivesse metido nisto.
Nem precisava de o fazer. As leis vigentes encarregavam-se de assegurar que
Eusébio não sairia. Aliás, Eusébio, que se saiba, apenas foi recebido por
Salazar duas vezes, uma em 1962, juntamente com a equipa do Benfica, para
assinalar a vitória na Taça dos Campeões Europeus e outra em 1966, juntamente
com os colegas de selecção, para comemorar o terceiro lugar no Mundial de
Inglaterra.
Basta atentar nas
datas para logo se perceber que essa coisa do “património nacional” a propósito
da transferência da Juventus não passa de uma fábula.
Mais tarde, depois do Mundial de 1966, no defeso, apareceu a
tal proposta do Inter de Milan e ao que parece, dados os montantes envolvidos –
um milhão de dólares (hoje ninguém imagina o que era à época um milhão de
dólares por um futebolista!) – o Benfica estaria na disposição de vender. Eusébio
foi a Milan e quando estava iminente a transferência, a Federação Italiana (ou
o Governo italiano, não posso precisar com rigor) proibiu as transferências de
estrangeiros para o futebol italiano. Porquê? Porque os italianos imputaram a eliminação
da Squadra Azzurra na fase de grupos do mundial de 66 (curiosamente em
consequência do resultado do jogo contra a Coreia do Norte) à proliferação de jogadores
estrangeiros no futebol italiano, nomeadamente na Série A.
Esta a razão por que se gorou a segunda hipótese de
transferência para a Itália.
Repare-se que a propósito desta gorada transferência nunca
ninguém responsabilizou o regime (Salazar). Mas se não havia entraves à sua
saída em 1966 (porque já tinha cumprido o serviço militar) por razão haveria em
1964 de haver outras proibições que não as que resultavam do incumprimento do
serviço militar?
É evidente, porém, que Eusébio não saiu para outro lado, depois de frustrada a transferência para o Inter de Milão, porque o regime que vigorava
no futebol era como acima já foi dito de completo desrespeito pelos direitos do
jogador. Mas isso não acontecia apenas em Portugal. Acontecia em toda a parte,
embora alguns clubes noutros países, principalmente os clubes latino-americanos
da Argentina e do Brasil e também nalguma medida em França (Kopa, por exemplo,
foi autorizado a transferir-se do Reims para o Real Madrid), fossem mais
permissivos.
De qualquer modo, Eusébio beneficiou deste “assédio”,
melhorando significativamente a partir de 66 a sua situação no Benfica, tendo
na negociação sido acompanhado pelo recém-licenciado em Direito, Silva Resende,
jornalista de A Bola, sportinguista e grande admirador de Salazar e da
Ditadura. Só que as melhorias daquele tempo, comparadas com as que beneficia
hoje um grande crack, quando renegoceia o vínculo contratual, não têm nenhum significado,
mesmo fazendo o cálculo actuarial do valor do dinheiro.
Quanto ao Panteão Nacional, apenas uma pequena nota: será que
Eusébio gostaria de lá estar? Será que não preferiria outro “palco”, o seu “palco”
predilecto?
E para terminar, toda a gente parece esquecer que Eusébio
também era Moçambicano. Optou ficar em Portugal, mas sempre teve muito orgulho
nas suas origens. Seria de muito bom tom que isto não fosse esquecido,
principalmente pelo Benfica, pelos seus adeptos, pela Federação e pelos desportistas
em geral, já que dos políticos, sempre prontos a aproveitar-se de tudo que os
possa beneficiar, nada se pode esperar.
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